terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Processo criativo

Há ainda um enxame 
Tão lindo
E desinibido
Que cresce em mim

Um turbilhão
Mais de cem mil 
Ou um milhão 

Micro-explosões 
Em bilhões de
Pequenos neurônios 

Rabiscos e cores
À sorte de ninguém 
Esperando que um dia
Cheguem a respirar fora
Deste micro-lar

Contracorrente,
A poesia que nunca escrevi;
Aquela que nunca
Nascera

Entrenós há um terço 
De reza
Que preza 
Por esse início
Que mal começou
E já é o meio
De um fim.

Futuro maldito

Nós vamos
Ensinar 
Experimentar
Testar

Nós vamos
Fazer e acontecer

E vamos
Fazer você chegar a lua,
mas antes, você nos dará
sua alma

Nós prometemos:
Não existem promessas
E regras
Ou relações

Há somente o subentendido 
Esse velho amigo
Que lhe guiará
Ao orgasmo absoluto

E no fim,
todas as aliterações,
as anáforas,
as metástases literárias,
serão uma porção de
promessas desfeitas
(que nunca fizemos)
e que vamos quebrar

Nós vamos cercear
Encarcerar
Delimitar
E, finalmente, matar

Cada pedaço do seu
precioso processo
de formação
linguística;
é isso:
não terá servido, enfim,
para coisa alguma

Nós vamos
engolir
deglutir 
e regurgitar
suas palavras
bilíngues 

E então,
só então,
você entenderá:
coisa alguma
é mais
do que se pode
imaginar.

Fresta

Abri a janela
E o peito
Mesmo com o nó
Certeiro
Que me travava
A garganta

Baixei a guarda
Abri
Assim mesmo
Na lata 

Pensei que
Na pior das hipóteses
Você podia
Não se abrir de volta

Mas
Por hora
Tudo bem

Precisava
Abrir
Nem que fosse as pernas

E abri
Muito mais que as pernas
Aquela janela
Tinha um peso
Com preço
Tão alto
Que eu não podia 
Arcar

Abri
Mesmo querendo
Não querer abrir
Mesmo querendo
Não querer ter que
Fechar

Abri
Mesmo sabendo
Que estava sentenciada
A isto:
Ter que fechá-la 

Abri
O peito
Dum último jeito
Que não achei que fosse
Possível

Num rompante
De esperança
Que torci pra
Desaparecer
Num instante
Como essa coisa 
De abrir
Pra logo fechar 

Aconteceu que
Abrir era mais que
Infinitivo
Virou imperativo

Abri
Fechei
Reabri
Fecha!

segunda-feira, 18 de julho de 2016

minha carne rasga,
sangra
e apodrece em silêncio;
ninguém vê.


os demônios que guardo aqui dentro,
ah deus!
são companhia zelosa,
de prosa
e reza
sem fim.


pode até ser
que qualquer dia dê certo,
essa coisa de morrê.


pelo sim pelo não,
aposto em pedidos e promessas
pagãs
ao ser que tudo vê.


minha história é triste,
de luta,
e você sabe,
dor não dá samba.

mas a gente continua,
como quem engole
comida crua e sorri.

sorri à dor
e acena - que cena, enfim -

uma hora se cerra,
encerra,
e a gente caminha pro fim.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

A minha dor tá em todo lugar.
Na rua, na esquina, no bar.
E quando lateja aqui dentro
chora que nem criança.
E a dor que sinto é da mãe
que não poderei mais ser.


Pode até ser
que um dia ou outro eu tenha de onde tirar
mais forças,
mas eu duvido.
Porque aqui, amigo,
acabou faz tempo.


Costumava fazer rima boa de amor
e compaixão, mas aí aconteceu que ficou assim:
só dor.


Eu costumava falar de amor
e até sentir,
ainda resta um pouco,
é isso,
de tudo ficou um pouco.
Só um pouco.


O todo virou a dor que nada cura.
Nada
nem
ninguém.


Parece até que é política,
estupro,
morte
e justiça.
Pra quem?
Mas eu sou carne e a minha dor
é de quem é carne,
pulsa.


Meu ventre lateja a dor de dois
abortos.
Oikos, casa, eco, mãe.
Fechada para sempre,
lacrada,
só mora a dor.

A última carta para Francisco.

Criei tantas histórias para te justificar, menti aos deuses e a mim mesma dizendo que, tudo bem, no fim tudo daria certo do nosso jeito.

O nosso jeito funcionava assim, eu te justificava e te perdoava por erros e pecados que você nunca reconheceria. Busquei em você o amor que não tive de ninguém, nem se quer de mim mesma. Talvez esse tenha sido o meu maior erro. Indago ainda: será?

Por algum tempo, alguns meses, busquei - em vão - por respostas que me dissessem o por que de tudo. Pode não parecer agora, mas eu lhe tinha tanto amor...

Todo esse amor com o tempo ficou gasto, puído, como um pedaço de pano velho, gasto de tanto uso. Eu o nomeei "manchado", você ainda se lembraria se eu dissesse? Não sei em que parte do percurso ficou tudo assim, dolorido.

Acho que foi naquele setembro cinza em que enterrei, sozinha, nossa filha. Tuas lágrimas de crocodilo me convenceram na época, talvez até convencessem hoje, no fim de tudo eu só precisava saber que alguém sentia pelo menos uma parte do que me destruíra por inteiro.

Só que você é de pedra; pedra e mentiras.

Você me acusava de ser o reflexo daquilo cujo você recusava-se a enxergar. Eu era a imagem da tua essência, pintada com sangue pelas tuas mãos grandes. Quantas vezes tua boca profana me acusou de mentirosa, Francisco? Uma piada, deveria ser no entanto, visto que dos teus lábios só saiam mentiras.

Acho que tudo ficou dolorido quando você concedeu a si mesmo o papel de juiz. Lembraria se eu dissesse? Talvez não.

O fato é que eu me lembro, tá tudo aqui, Francisco, feito tatuagem na minha pele. As marcas que você, com o seu tipo único de carinho, fez questão de desenhar - uma a uma -. Naquele setembro cinza, eu me lembro, você julgou que eu não mais merecia teu amor. Eu insistia, dizia que o amava para ouvir toda a dor e crueldade implícitas no teu silêncio.

Qualquer dor, mesmo física, era melhor que não sentir nada.

Morri um pouco mais naquele mês. Um pouco mais do que achava possível.

Morri e, pior do que isso, enrijeci o coração.

Certa vez, uns anos depois, você me disse que não me reconhecia mais. Não gosta do que vê, Francisco? Ora essa, foi você mesmo quem pintou esse quadro.

A tua obra de arte sou eu, querido. Com toda essa acidez e amargura, o teu mais bonito quadro sou eu.

Hora ou outra você chegará até aqui e lerá isso, esse apanhado de farpas que guardei na garganta por um ano e alguns meses. Você me sentenciou a isso, mas eu te devolvo toda essa dor com, finalmente, perdão.

Você já não faz mais parte de mim. Atestei minha liberdade só ontem, tardou, mas veio. Alforriada sou, enfim!

Talvez um dia nos sentemos num café para falarmos sobre a minha dor, essa de quem é mãe, que você nunca conhecerá. Você é breu, em suas entranhas só habita teu ego, esse forte e imensurável bloco de uma suposta masculinidade carregada de misoginia. Isso tudo não me assusta, não mais.

"Livre do teu veneno eu sou mais pura", cito agora você mesmo.

Eu te amei. Amei mais do que todas as minhas palavras possam mensurar. E o amor que senti foi como um gole intenso de um vinho duro*.

Só queria que soubesse que todo esse tempo eu esperei apenas que dissesse que sentia, ao menos um pedacinho, da minha dor. Absolvi-me de toda a culpa por ter dado errado e me libertei, tudo o que aconteceu, não foi por minha escolha.

Sou a tua obra-prima, manchada da cabeça aos pés pelo teu não-amor. Por isso, me admiro e me absolvo. Esperei muito tempo por isso, agora, avante.

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*Vinho duro: É aquele que possui excesso de taninos. Por esse motivo, o mesmo deixa uma profunda sensação de amargor e secura no fundo da língua.

domingo, 23 de agosto de 2015

dia de luz, festa de som

será lindo o dia em que tudo for perfeito;
o Sol brilhará e tocará nossos corpos com leveza,
sem fazer suar.

nesse dia tão lindo
não haverá tristeza
nem dor.
dor: o que é?

o nada tornar-se-há verbo
e o vazio de dor
será puro amor.

nesse dia,
que talvez seja em setembro,
as flores beijarão as árvores
e eu beijarei você de olhos abertos
- para ter certeza de que tudo é real -.

nada de ruim nos alcançará,
nesse dia tão lindo
e especial
que nunca existirá.

não existirá por que não haverá dia
sem dor ou problema.
e não há poema capaz de versar
sobre a falácia que é essa promessa.

dói a bessa pensar que esse dia
nunca existirá.

mas é mesmo assim que se seguem os dias,
em torno desse tal dia que de tão perfeito
nunca existirá.

você vai dizendo que nele faremos tudo o que eu quero
e todos os meus sonhos serão realizados,
e eu finjo que acredito
por que desses teus lábios lindos,
eu aceito qualquer mentira barata.

ah! que lindo será esse dia
que nunca existirá.